segunda-feira, 1 de julho de 2013

Cresce o Cinza.


Hoje é um dia diferente. Não tão diferente aos olhos do cotidiano, mas sinto, lá no fundo, de maneira sutil e descompromissada, que este é um dia diferente. Hoje é um dia monocromático. Cinza.

O céu é cinza, com nuvens espessas, baixas e disformes. Chuvisca. Aquela água fria, fina e entediante, levada pelos ventos sem destino. A rua do velho hospício também é cinza. Os paralelepípedos desordenados, que insistem em aparecer nos trechos onde o asfalto foi quebrado e esquecido, reluzem ao solene toque da água, como se a chuva fosse uma carícia lenta e amorosa. Brilham sim, mas brilham cinza.

Os prédios, que outrora formavam as vívidas alas psiquiátricas, apesar do conteúdo não ser nem um pouco agradável, agora tão quietos e descoloridos fazem a paisagem afundar em melancolia. A tintura branca, rosada, ou até mesmo aquele tom verde-menta se foram dando espaço à doença cinza que se apossou descaradamente da rua. As paredes cobertas de rachaduras e musgos, e as velhas janelas de madeira com seus batentes comidos pelo tempo dão um aspecto solitário e improdutivo. As grades já enferrujadas protegem o antigo santuário dos jardins, hoje, transformados em lembrança.

Os galhos secos se penduram em corpos frios que, num tempo que há muito já se findou, foram árvores. Flores são desconhecidas. Tudo o que se vê são pequenos arbustos de espinheiros, e o capim velho se arrastando pelos caminhos. Situação calamitosa, digna de pena. As pragas nascem, crescem e morrem todos os dias. Os jardins, com suas mais variadas flores, metamorfosearam-se na personificação viva da depressão, consumindo-se a si mesma num canibalismo visual degradante e odioso. O filho bastardo de um mundo em escala de cinza.

Mas minha alma não mente e jamais me engana. Hoje não é apenas um dia chuvoso na rua do sanatório. Vejo uma pequena coisa diferente, lá longe, subindo, no meio da rua. Singela e serena, anda sorrindo. Não anda, mas flutua com seu vestido coral, encharcado e colado ao seu corpo reto. No meio de um ambiente tão fosco, e sobre uma pele tão branca, o coral parece carmesim.

A cada passo uma nota ecoando. Dança. Gira. Ri. Descalça, não faz questão dos poucos, mas insistentes, paralelepípedos da rua que a fazem deslizar. O cenário não afeta sua alegria. Os cabelos ruivos cacheados voam jogando água pelos lados, enquanto as sardas nas maçãs do rosto observam de cima as pequenas covinhas nos cantos da boca. Estonteantemente linda, na mesma proporção em que é despretensiosa.

Seus olhos verdes não enxergam este mundo. Estão presos distantes daqui, contemplando a própria felicidade. Não veem nada além daquilo que sua mente em devaneios vê. As cores infinitas que formam a luz branca. Sente o cheiro da terra fértil e dos eucaliptos distantes. Ouve o som da música dos pássaros, e a cantoria do vento. Sente a chuva lavar-lhe a pele na mesma medida em que lava-lhe a alma.

Em seus dedos, de unhas comidas e cutículas destroçadas, pende-se uma rosa. Não apenas uma rosa. Um Príncipe Negro. Majestoso, e imponente, com suas pétalas escuras e raras. Um príncipe para uma Rosa, ou uma rosa para um Príncipe?! Não se sabe ao certo, também não se faz necessário saber. O que se sabe é que ela plantou esta rosa, por entre as falhas do asfalto, em frente ao velho portão enferrujado. O que se sabe é que deu as costas e foi embora, do mesmo jeito que chegou, dançando além do chão, sorrindo e vivendo seu mundo. O que se sabe é que trouxe do seu mundo a essência, e a deixou aqui. Plantada no meio da rua. Levou consigo todo o cinza. Levou consigo todo o velho, todo o cotidiano, toda doença. Deixou para nós o seu mundo, o seu olhar.

Deixou para nós o seu jardim, no meio do asfalto, na rua do hospício. Trouxe-nos de volta a loucura que nos faltava. A insanidade que havia morrido e que nos é necessária para sermos felizes, para sermos plenos. Trouxe de novo a beleza das cores, e das pequenas coisas. Dizem que ninguém entende os loucos, mas só aos loucos pertence a sabedoria do mundo.

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